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PenseHumanas

Quando a mulher negra fala: afeto, teoria e política em (des)construção.

Muitas de nós, mulheres negras, conhecem a imposição do silêncio em nossas vidas. Não falar no privado: em casa, no âmbito familiar. Não falar em público: no trabalho, na universidade. Nossa voz e, portanto, nossa existência é silenciada na articulação das opressões que nos atingem: racismo e machismo. No entanto, muitas de nós rompem os silêncios e falam inspiradas em vozes que ecoam ontem e hoje, sejam elas de nossas mães, avós, tias e outras mulheres que só passamos a conhecer quando “aprendemos  a ler”, tal como nos provoca o poema “Não vou mais lavar os pratos” da escritora, atriz e poeta Cristiane Sobral. Assim ela diz:

 

“Agora que comecei a ler, quero entender
O porquê, por quê? E o porquê"

 

Quando eu “aprendi a ler” fui impactada pelas vozes de algumas mulheres negras, provavelmente conhecidas de vocês, mas que eu gostaria de ainda assim compartilhar. A primeira voz foi a da escritora Carolina Maria de Jesus. Em uma passagem do livro “Quarto de despejo” ela disse que “não haveria homem que gostasse de uma mulher que lê, que tem amor pelos livros.” Eu não esqueci essa frase e muitos anos depois, quando ouvi de um homem em tom de estranhamento e reprovação que eu era “muito reflexiva”, eu ouvi a voz de Carolina: não te disse! Então, passado o silêncio que me constrangeu consegui dizer: mas, eu gosto de ser assim!

Outra voz foi a de Neusa Santos, escritora e psicanalista, em “Tornar-se Negro”. Era o momento em que eu estava me tornando negra. Aprendendo o que isso me fazia sentir no coração, na mente.  Ou simplesmente como pensar, expressar aquilo que é vivido, sentido. Foi aí que eu comecei a pensar que a teoria não é descolada da realidade, do vivido. É uma teoria vivida como tratado pela antropóloga Mariza Peirano, mas em outra perspectiva.

Depois, foi a voz de “Marli Coragem”, uma mulher negra, empregada doméstica que em plena ditadura militar enfrentou as forças constituídas “legalmente” para levar à justiça os assassinos do seu irmão. Isso foi manchete na mídia dos anos 80. Daquela época guardo a imagem daquela mulher negra entrando altiva em um quartel e olhando nos olhos de quem ela acusava foi algo que, somado à leitura da antropóloga Lèlia Gonzalez, em “Lugar de Negro”, me impactou. O texto de Gonzalez, publicado também nos anos 80, analisava o impacto da repressão política combinada com a política econômica no período da ditadura militar sobre a população negra. Em época mais recente, a vereadora e socióloga Marielle Franco também analisa o cenário brasileiro e sua frágil democracia, por meio do texto: “A emergência da vida para superar o anestesiamento social frente à retirada de direitos: o momento pós-golpe pelo olhar de uma feminista, negra e favelada”

Eu insiro cada uma dessas vozes femininas e negras de forma intercruzada como numa encruzilhada: o afeto, a teoria e a política. E porque isso é importante, podemos nos perguntar? Será por que “Nossos passos vêm de longe”? ou “Quem sabe de onde veio, sabe para onde vai”? ou ainda porque “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”, como nos diz Angela Davis filósofa e ativista afroamericana.  Obviamente, estou situando essa minha fala na perspectiva das lutas das mulheres negras, porque é isso: esse é o ‘lugar de fala” como nos provoca a pensar a filósofa Djamila Ribeiro. É também uma “escrivivência” inspirada na escritora Conceição Evaristo. Convido vocês a pensar sobre isso.

Essas vozes dessas mulheres negras se somam a outras e outras. Apenas para ficar com algumas que tem me inspirado e motivado nos últimos tempos, cito a abolicionista afro-americana Sojourner Truth (1797-1883), e sua inquietante pergunta: E não sou uma mulher!? Também me alinho com a filósofa e ativista Sueli Carneiro, que ano passado já nos alertava: “Organizem-se, porque não há mais limite para a violência racista”. E essa organização tem um tempo. Um tempo que Conceição Evaristo diz que é um “Tempo de nos aquilombar”. E o faremos na encruzilhada das razões afetivas, teóricas e políticas. Lembrando que: 

"É tempo de ninguém se soltar de ninguém,

mas olhar fundo na palma aberta

a alma de quem lhe oferece o gesto.

O laçar de mãos não pode ser algema

e sim acertada tática, necessário esquema"

Essas razões, citadas anteriormente, são afetivas porque o afeto[II] por nós e entre nós é fortalecedor. É o primeiro passo de promoção de encontros verdadeiros. Penso que de pouco adianta se dizer decolonial, progressista, antirracista ou o que for se não houver demonstrações disso na concretude do vivido. É aí que nossas alianças passam por quem olhamos nos olhos, estendemos as mãos ou vemos de forma prioritária em nossas vidas. Em relação às mulheres negras, há duas experiências que eu gostaria de relatar nesse ponto: a primeira delas é que juntamente com a socióloga baiana Edilene Machado Pereira   escrevemos um artigo sobre a solidão de mulheres negras. Esse artigo se baseou em entrevistas online feitas com 68 mulheres negras. Inicialmente pensávamos na ideia de solidão como algo ligado aos relacionamentos românticos, mas para nossa surpresa a maioria dos relatos trouxe a solidão como algo vivido e sentido desde a infância. Em casa. Na escola. Naquele carinho esperado que nunca veio. Naquele afeto nunca demonstrado e, por conseguinte, naquela autoestima elevada que não se construiu. E isso tudo dói. Fere.

A segunda experiência vem do projeto de extensão que coordeno desde 2018, em parceria com a professora e assistente social Zelma Madeira: “Mulheres Negras Resistem: processo formativo teórico-político para mulheres negras”(III), o qual ocorre em Fortaleza/Ceará. Esse é um curso de, para e com mulheres negras. Cursistas, formadoras e referencial teórico-político é composto por mulheres negras. No início do projeto, eu me perguntava: será que as mulheres negras ainda sentem necessidade de estarem juntas, apenas nós? Exercitando nossa fala e nossa escuta? Ou será isso, apenas uma coisa da minha geração? Uma coisa minha que veio com a morte brutal de Marielle Franco e o fato de viver em um estado em que ainda se diz que negros e negras não existem. Pois bem, estamos na 3ª edição do projeto – seguimos virtualmente agora por conta do isolamento social – e sim nossas cursistas reconhecem esse espaço e essa construção dessa afetividade como parte do nosso protagonismo feminino e negro.

É uma razão teórica porque por muito tempo nós negros e negras fomos sinônimo da emoção em detrimento da razão. Objetos de conhecimento, mas não sujeitos produtores de conhecimento. E cotidianamente muitos de nós temos que provar nossas habilidades, talentos, quando essas não se enquadram numa visão colonial. Como sabem sou professora na Unilab – Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira ou simplesmente meu afro-sonho desde 2013. Leciono no curso de antropologia (graduação e mestrado). E posso dizer para vocês que não há semestre em que eu não tenha que dizer a um estudante negro, mas especialmente às jovens negras, que aquele espaço também é delas. Que a universidade é nosso lugar, se assim o quisermos. Isso, ao mesmo tempo que me machuca, pois lembra a criança negra que fui sozinha no pátio da escola é parte do que vejo como minha missão, enquanto professora e mulher negra.

E, por fim a política. Os espaços decisórios de poder. Quando Vilma Reis, socióloga e pré-candidata à prefeitura de Salvador/Bahia, diz que é preciso romper com a hegemonia branca na política, ela está falando para quem? Quando dizemos que representatividade importa e que, se eu concordar com isso, não posso deixar de me inquietar em fazer parte dos apenas 3% de docentes negras, mulheres, na pós-graduação das universidades públicas brasileiras. O que isso nos diz? Quando vocês se dispõem a ler esse texto, resultante da fala dessa mulher negra, o que isso diz sobre cada um(a)? O que isso diz sobre nós? Pensemos nisso.

Pensemos na potência que a (des)construção dessa encruzilhada entre afeto, teoria e política traz, especialmente, para nós mulheres negras. Há perspectiva de resistências e reexistências em uma ótica coletiva. Foi por apostar nisso que eu escrevi “Entre vivências e resistências: o racismo na ótica de intelectuais negros(as)”[IV]. Na escrita que trago agora, procurei expor uma trajetória de vida atravessada por silêncios impostos, mas também por falas de mulheres negras que são a base da mudança que queremos em nós e/ou na sociedade em que vivemos. Vocês poderão notar que as referências usadas são de ampla maioria negra. Somos nós por nós na busca de uma linguagem que nos represente. Espero ter conseguido.

Digo espero porque recentemente ao ler e reler o texto “Erguer a voz” em “Pensar como feminista, pensar como negra” de bell hooks entendi que “esse ato da fala, de erguer a voz, não é um mero gesto de palavras vazias: é uma expressão de nossa transição de objeto para sujeito – a voz liberta”. Nos libertemos!

 

Notas

O título desse texto resulta da live apresentada por mim no “I Ciclo de Debates Linguagem e Colonialidade: raça e interseccionalidades”. Esse evento acadêmico foi promovido pelo Grupo de Estudos Discurso, Identidades, Raça e Gênero – GEDIRG/UECE, sob a coordenação do Prof. Dr. Marco Antonio Lima do Bonfim. A gravação da live está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zp8e-SroE4s

II-Griffos meus.

III-Para maiores informações: https://revista.unitins.br/index.php/humanidadeseinovacao/article/view/1826

IV-Esse texto é um dos capítulos do livro “Sim, o racismo existe: reflexões, ações e iniciativas para combater o racismo e seus simulacros”, organizado pelos professores Evaldo Ribeiro Oliveira (Pedagogia/Unilab) e Sarita Amaro, assistente social e escritora. O livro está disponível no site da editora deverá ocorrer na Unilab, por ocasião da retomada do calendário acadêmico.



Os textos publicados são de inteira responsabilidade dos autores.

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Autor Vera Rodrigues do post Quando a mulher negra fala: afeto, teoria e política em (des)construção.
Vera Rodrigues

Professora no curso de Antropologia (bacharelado e mestrado) na UNILAB- Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira. Coordenadora do projeto de extensão "Mulheres Negras Resistem: processo formativo teórico-político para mulheres negras". Coordenadora do "Projeto de Pesquisa e Extensão: "O Apagamento do Negro na Terra do Sol - rumos da educação e cultura afro-brasileira no Ceará." Membro do Comitê de antropólogos(as) negros(as) da ABA - Associação Brasileira de Antropologia. Doutora em Antropologia Social pela USP - Universidade de São Paulo (2012). Mestre em antropologia social e Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2004). Ex-Coordenadora Pedagógica do Curso de Especialização (EAD) UNIAFRO- Promoção da Igualdade Racial no Ambiente Escolar (2014-2016). Ex-Conselheira Estadual de Promoção da Igualdade Racial (2016-2018). Ex-Bolsista do Programa Internacional de Bolsas de Pós-graduação da Fundação Ford (2007)

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