Sou neta, filha e sobrinha de empregadas domésticas.
Eu mesma já fui uma.
Graças à execução de políticas públicas voltadas à ampliação do acesso à educação que vigoraram
no Brasil de 1995 até 2016, as novas gerações de mulheres da minha família
podem vislumbrar um futuro diferente, assim como eu pude.
Todavia, entender o mecanismo que faz com que gerações de
mulheres oriundas de famílias pobres, sobretudo negras, são ainda hoje, ampla
maioria a desempenhar trabalhos domésticos como meio de sobrevivência, faz
parte da construção da minha própria identidade.
Estamos à beira de completar 132 anos da abolição formal da
escravidão, no entanto, para que isto se torne de fato concreto, muitas lacunas
precisam ser preenchidas. Uma delas é a questão da permanência de mulheres
negras nessa função, que não é menos digna que outras, porém, é menos remunerada,
menos valorizada e menos amparada socialmente.
Na busca pelo entendimento de como se desenha esse processo,
é preciso voltar no tempo no mínimo 140 anos, até meados de 1880. Neste
período, imigrantes europeus, brancos e livres desembarcavam no Brasil aos
milhares com a finalidade de substituir a, já escassa, mão-de-obra dos negros,
povo trazido involuntariamente ao país e escravizado durante cerca de trezentos
anos, e também para atender a esdrúxula ideia circundante de branquear a
população. Ideia essa, que resultava da crença de que o país jamais chegaria ao
nível de desenvolvimento das grandes nações capitalistas devido à imensa
população preta e mestiça que tinha na época.
“Acreditava-se que a partir de um processo de miscigenação, dada a “superioridade genética” dos europeus, o povo brasileiro perderia aos poucos os caracteres físicos e mentais herdados de seu passado escravista. Começava a tomar corpo a tentativa elitista de “branqueamento” da população...” (MARIN, p.38)
Jogada numa concorrência desleal com o imigrante europeu, já
adaptado ao modelo de trabalho no sistema capitalista, a população negra, após
a abolição, é completamente marginalizada. Pode-se atribuir isso ao fato desta
população não ter sido alvo de nenhuma política de integração social engendrada
por aqueles que a “libertaram”, como foram os europeus que receberam inúmeros
incentivos para que melhor pudessem se estabelecer por aqui.
“A nova legislação que passou a regular os contratos de trabalho livre buscou amenizar o tratamento dado aos colonos, amortizando-lhes as dívidas, garantindo-lhes liberdade de culto, registros de nascimento, casamento e óbito.” (MARIN, p.39)
Também atribui-se ao
fato da população negra não ter
condições de perceber o trabalho da
mesma maneira que os imigrantes, que viam nele uma forma de dignidade, de
ascensão econômica e social. Seria exigir de mais de uma gente que durante três
séculos teve, justamente no trabalho, o motivo de sua animalização.
“O negro torna-se vítima da violência mais covarde. Tendo sido animalizado como tração muscular em serviços pesados e estigmatizados como trabalhador manual desqualificado – que mesmo os brancos pobres evitavam – é exigido dele agora que se torne um trabalhador orgulhosos de seu trabalho.” (SOUZA, p.77)
Restou então ao homem negro a vagabundagem - entenda-se aqui
este termo como situação de viver ou andar errante, sem objetivo certo. Isto
porque não havia espaço para essa subclasse, formada por ex-escravos na nova
sociedade que estava surgindo.
“Desse modo a urbanização representou uma piora nas condições de vida dos negros livres e de muitos mestiços pobres das cidades. O nível de vida baixou, a comida ficou pior e a casa também. Seu abandono os fez, então, perigosos, criminosos, maconheiros, capoeiras, etc.” (SOUZA, p.61)
Às mulheres negras
restou o trabalho doméstico, uma vez que as imigrantes europeias não se
interessavam por desempenhar este tipo de função. Inicia-se aqui a condição que
vai reverberar por gerações e gerações de descendentes destas mesmas mulheres.
Até aqui conseguimos entender o primeiro ponto da questão: a
inserção. No entanto, para chegarmos a um entendimento completo do que me
proponho a refletir, é necessário que entendamos os motivos que levam à permanência.
Dados apontados pela Organização Internacional do Trabalho constatam
que a predominância de mulheres negras no desempenho de trabalhos domésticos no
Brasil se mantém ao longo do tempo. Segundo a pesquisa, no espaço temporal de
vinte anos, entre 1995 e 2015, o número de mulheres pretas ou pardas
desempenhando funções domésticas saltou de 2,6 para 3,7 milhões. Já o número de
mulheres brancas nesta mesma função caiu de 2,1 para 2,0 milhões.
Ao ocuparem grande parte de seu tempo na execução das
tarefas domésticas, primeiro no trabalho e depois em suas próprias casas, às
mulheres negras quase não resta espaço para se dedicarem a outras funções de
extrema importância, como educação, cultura, lazer ou mesmo ao ócio. A classe
média compra o tempo daqueles que pertencem à classe baixa por valores
insignificantes, para que executem funções de extrema relevância como cozinhar,
lavar, limpar, cuidar dos filhos, etc. Desta maneira podem dedicar-se ao
desenvolvimento de funções que possibilitem sua permanência na condição
privilegiada em que já se encontram.
Os filhos da classe média têm possibilidade de dedicar seu
tempo exclusivo aos estudos, garantindo uma formação que lhes coloque no futuro,
no mínimo na mesma posição que os pais. Em contra partida, os filhos da classe
baixa, devido às poucas condições financeiras da família, muito cedo entram
para o mercado de trabalho, abandonando a escola ou colocando-a em segundo
plano. Esta decisão, muitas vezes involuntária, é a assinatura da sentença de
ter por toda a vida uma profissão socioeconomicamente secundária, uma vez que o
emprego é um aspecto da vida humana que fala muito sobre o indivíduo. É ele
quem vai definir a qualidade de vida e o acesso aos bens socialmente
valorizados, tais como saúde, educação, cultura, moradia, bens de consumo e
outros. A inacessibilidade destes bens à classe baixa, devido ao desempenho de
funções economicamente secundárias, a coloca em desvantagem em relação às
outras camadas sociais da população.
Desta forma, fica claro o mecanismo que mantém a ampla
maioria de mulheres negras e pobres desempenhando funções precarizadas, que lhe
oferecem baixos salários e pouca ou nenhuma segurança social. De maneira geral,
pode-se entender então, que o acesso à educação de qualidade é o elemento
fundamental para a superação de tais condições.
Referências
BIROLI, Flávia. Gênero e Desigualdades: limites da
democracia no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018.
SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio
de Janeiro: Leya, 2017.
MARIN, Marilú Favarin. Trabalho Escravo, Trabalho Livre. São
Paulo:FTD,1996.
O que faz o Brasil ter a maior população de domésticas do
mundo. Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/brasil
Acessado em: 21/04/2020
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O texto da autora Juliana Nascimento de Oliveira, traz algo bem-vindo ao cenário acadêmico e à luta antirracista: a valorização das nossas trajetórias de vida -população negra - como fenômenos que dizem muito sobre macro questões nacionais: o mundo do trabalho, direitos sociais, a estrutura socioeconômica do país e suas desigualdades, enfim permite um olhar amplo e complexo partindo de quem fez e faz esse país. Parabéns!
Fabrício, percebo, pelo teu comentário, que situações naturalizadas pela sociedade mas que todavia não são naturais, já te chamavam atenção desde criança.
Entendo também que o fato de poder exercer um trabalho remunerado, ainda que pouco, deu às mulheres negras algumas oportunidades de ascensão social, mínimas, nas deu.
Depois da publicação deste texto ouvi um relato que dizia o seguinte: "eu sempre fui doméstica desde jovem. Eu nunca me vi fazendo outra coisa porque a sociedade me dizia que aquele era meu lugar."
Diante dessa fala que eu acredito, em função das minhas pesquisas em relação ao tema, ser a realidade de muitas, vou repetir algo que falei na ocasião: não vejo problemas em exercer a profissão de empregada doméstica. Vejo problema em querer exercer outras funções e não conseguir.
Parabéns! Gostei muito da reflexão. Pensei em duas coisas: 1) Eu passei minha infância em Santana do Livramento. Na casa ao lado viviam quatro mulheres negras como empregadas domésticas. Moravam na casa onde trabalhavam. A família era de antigos estancieiros. Porém, fiquei pensando porque elas não tinham suas casas? O salário era insuficiente? Receberiam salário? Eu tive muito contato com duas delas. Lembro que vinham na nossa casa nos sábados. Jantávamos juntos! Isso foi nos anos 1980, 100 anos da abolição. 2) A questão do acesso das mulheres negras após a abolição aos serviços domésticos, por um lado, auxiliou na organização de diferentes associações negras pelo país. O Clube Gaúcho, de Caxias do Sul, fundado em 1934, tem participação importante de mulheres negras, possibilitada, muitas vezes, por esse tipo de trabalho realizado. Abraços!