1. O que proponho aqui é uma discussão a partir de
inquietações que me acompanham e que reapareceram durante o período de
isolamento social. O ressurgimento desses incômodos se deve às leituras
realizadas, aos filmes assistidos, às séries vistas e revistas e aos momentos
de contemplação sob a luz do sol. Temos aqui uma construção que visa ao debate,
aberta a desacordos e críticas. Pensar sobre o casamento entre homossexuais deve
nos levar a outras reflexões. Esse é o objetivo.
2. No livro Razões e práticas: sobre a teoria da ação, o
sociólogo francês Pierre Bourdieu, falecido em 2002, diz o seguinte: “O Estado
não tem, (...), necessidade de dar ordens, ou de exercer coerção física, para
produzir um mundo social ordenado: [...]” (p. 119). Com isso, ele sugere que
não há necessidade de impor a força ou a violência física sobre uma população
para que ela produza/reproduza o mundo social “ordenado” em que está inserida.
Existiriam formas mais sofisticadas de exercer a dominação e manter a ordem sem
o uso da força ou da violência.
3. Nesse sentido, o canal do YouTube Tempero Drag, através
da drag queen Rita Von Hunt, nos contempla com um vídeo intitulado Revisionismo
Histórico. Nele, Rita analisa diferentes versões do filme Titanic. Ela se detém,
mais especificamente, na versão de 1943, criada na Alemanha, a pedido do
ministro da propaganda nazista, Joseph Goebbels. Tal figura (que teve um
discurso copiado recentemente por Roberto Alvim, secretário da cultura
bolsonarista) disse em 1933: “A melhor propaganda é aquela que, por assim
dizer, funciona de forma invisível, penetra toda a vida pública, sem que o
público tenha ciência da sua iniciativa propagandista”. Relacionando ao que foi
dito anteriormente, concordo que essa “propaganda invisível”, utilizada pelo
cinema nazista, é uma forma de dominação, uma forma de produzir/reproduzir um
mundo social, a partir dos mais distintos interesses, sem a necessidade da
violência física.
4. Então, o cinema e os programas de TV podem ser esses
propagandistas na produção/reprodução de um mundo social ordenado. Não tenho
dúvida disso! Sendo assim, através do Prime Vídeo pude rever a série Will and
Grace. Nela, as histórias giram em torno das personagens que dão nome ao
seriado: Will, um homem, cisgênero, homossexual; Grace, uma mulher, cisgênera,
heterossexual. Eles dividem o local onde moram. Quando assisti à série, entre
1998 e 2006, pouca coisa me incomodava. Não tinha grandes problematizações a
fazer, sobre a relação entre os personagens e as piadas ditas. Revendo-a, em
tempos de quarentena, me chamou atenção a campanha, de forma explícita e
“invisível”, em defesa do direito ao casamento pelos casais homossexuais.
5. Mais uns dias de quarentena e resolvo assistir ao filme Minha
mãe é uma peça – 3. Lá está dona Hermínia, buscando dar sentido a sua vida após
a saída dos filhos de casa. Entre os eventos que podem dar nova razão de viver
a Hermínia estão: o nascimento do neto e a festa de casamento do filho
homossexual. Depois de, mais ou menos 15 anos, em relação ao seriado Will and
Grace, o casamento entre homossexuais está presente em um filme nacional. A
festa com direito a um lindo bolo, decorado com a reprodução de um casal gay no
topo, encerra de forma emotiva o filme. O final ainda conta com discurso da
dona Hermínia sobre o amor e sobre o medo da violência contra homossexuais. Os
créditos finais são acompanhados por fotos da vida real de Paulo Gustavo, ator
que interpreta dona Hermínia, mostrando cenas do seu casamento com Thales Bretas
e de momentos em família com seus filhos.
6. Chegamos a outra série. Casa de las flores, disponível na
Netflix, que também traz um casal homossexual. Com produção mexicana, a série retrata
um romance gay entre idas e vindas, acordos e desacordos, com passagens por
relacionamentos abertos, e, nas suas últimas duas temporadas, retrata as diversas
tentativas de consolidação de uma relação estável entre Diego e Julian a partir
de um casamento. Os dois pretendem ter um filho. Tal desejo faz com que o casal
se separe e Diego seja internado em uma clínica para “cura da
homossexualidade”. Seu desejo por um filho, por uma família é tamanho que ele
chega a buscar “tratamento” para acabar com a sua homossexualidade. A série
encerra com Julian e Diego juntos, dividindo os cuidados de uma criança com um
casal heterossexual, do qual faz parte a mãe, irmã de Julian.
7. O Titanic, de 1943, tinha a intenção de fazer a “melhor
das propagandas”, aquela que é invisível. Will and Grace, Minha mãe é uma peça
– 3, Casa de las flores, entre tantas outras obras de ficção possuem, querendo
ou não, uma função propagandista. Ela pode ser invisível. No caso, ela é
bastante visível. O casamento entre homossexuais, as possibilidades de adoção
entre casais homossexuais estão presentes no nosso cotidiano, seja no mundo da
ficção, seja no mundo real. Tal possibilidade é festejada, considerada um
avanço, uma vitória do movimento homossexual, que teve o casamento e a adoção
como uma de suas bandeiras, se não a principal.
8. No livro Ética bixa, o filósofo espanhol Paco Vidarte
sugere que as pautas dos movimentos LGBT estão “coladas ao poder
heterossexista” (p. 44). Ou seja, as pautas desse movimento buscam o
enquadramento de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transgêneres ao mundo
construído pela e para a heterossexualidade. A luta seria feita para conquistar
coisas que os heterossexuais têm. É uma busca por copiar tudo o que eles têm.
Reproduzir nos casamentos entre homossexuais os papéis do homem e da mulher,
cis, heterossexuais. O filósofo, então, questiona se é isso que realmente se
quer. Se for isso, todo o poder revolucionário, de transformação social do
movimento LGBT fica em segundo plano ou deixa de existir.
9. Vamos voltar ao Pierre Bourdieu. Diz ele: “a família como
categoria social objetiva (estrutura estruturante) é o fundamento da família como
categoria social subjetiva (estrutura estruturada), categoria mental que é a
base de milhares de representações e de ações (casamentos, por exemplo) que
contribuem para reproduzir a categoria social objetiva. Esse é o círculo de
reprodução da ordem social” (p. 128). Fica a sugestão de que a busca por
homossexuais em reproduzir, em ter o direito de serem iguais aos heterossexuais,
não movimenta as estruturas sociais que são: racistas, sexistas, gayfóbicas,
lesbofóbicas, transfóbicas, classistas...
10. Assim, chego às considerações finais pensando que os
movimentos LGBT levantaram, nos últimos anos, a bandeira por possibilidade de casamento,
adoção e formação de famílias homossexuais. Tal bandeira foi propagandeada de
diversas maneiras. Séries e filmes foram aliados importantes para mostrar de
forma evidente ou “invisível” o desejo pelo casamento e consequente formação de
famílias entre a população que é dissidente da heteronormatividade. É a vitória
de uma luta que levou anos para ser contemplada, embora ainda não na totalidade.
Seus sentidos são variados e possibilitam a quebra de uma série de estereótipos
que foram ligados historicamente à homossexualidade.
11. Por outro lado, incorporar homossexuais aos moldes da
heteronormatividade pode ter o objetivo de retirar qualquer potencial
transformador/revolucionário dos movimentos LGBT! As migalhas que são
distribuídas a essa população pelo Estado, depois de muita luta organizada, são
entendidas como grandes avanços, grandes conquistas. Mas, para chegarmos aonde?
Na manutenção da ordem estabelecida? Por isso, é importante refletir, analisar
e avaliar as pautas e as conquistas do movimento LGBT. O que esse movimento
quer é, realmente, se enquadrar no que já existe? Ao buscar esse
estabelecimento na ordem, como ficam aqueles homossexuais que não se enquadram
nela? Diego, por exemplo, buscou uma “cura” para tentar se adaptar. Será que o
casamento homossexual, hoje propagandeado das mais diferentes formas, não ajuda
a criar uma “normalidade” em que muitos homossexuais buscam se “enquadrar” e
não conseguem? Estaria esse padrão de homossexuais casados e com filhos em processo
de “cristalização”, se transformando em uma das formas de dominação? Precisamos
conversar sobre, pois, como diz Pierre Bourdieu, no livro A produção da crença,
os efeitos ideológicos, para se exercerem, não precisam de palavras, “mas do
silêncio cúmplice” (p. 200).
Referências bibliográficas:
BOURDIEU, Pierre. Razões e práticas: sobre a teoria da ação.
Campinas, SP: Papirus, 1996.
BOURDIEU, Pierre. A produção da crença: contribuição para
uma economia de bens simbólicos. São Paulo: Zouk, 2002.
VIDARTE, Paco. Ética bixa: proclamações libertárias para uma
militância LGBTQ. São Paulo: N-1 Edições, 2019.
Ola Vagner, entendo seu ponto de vista e identifico que muitos homoafetivos se casam não pela busca da aceitação da sociedade heteronormativa, mas porque é seu ideal e te confesso que parte de mim também acredita nisto e espera que um dia isso seja real! Vejo o casamento como a confissão pública de um amor construído e amadurecido. Contudo, Vagner , o Fabricio, pelo texto, não tentou minimizar a instituição casamento e a menosprezar célula família independente de como ela seja construída. A Ideia do texto foi problematizar aqueles utilizam o casamento como uma porta de entrada para a aceitação da sociedade, e não vem uma outra forma de convivência amigável e sadia se não for padronizando-se aos conceitos normativos dos heteros.
Parabéns Fabrício, você é ótimo.
Quero também parabenizar aos responsáveis pelo site, está ótimo.
Eu penso que nossas lutas, mais do que estarmos inseridos nas normas hetero, sim queremos, ou de ter o que os heteros tem, sim queremos, igualdade. Um parêntese aqui, para o movimento feminista, será que elas querem ser iguais aos homens, estar nos postos ou papeis que eles ocupam?
Nossas bandeiras vão além, e são muito mais profundas, nossas bandeiras são multicoloridas porque somos mutantes e buscamos a aceitação sendo transgressores. Transgressores de nossa própria cultura, inclusive. Diria então, que discordo, destes autores que você nos citou. Não sei se todos os gays gostariam de casar-se, eu quis hehehehe. Não sei se todo transexual gostaria de fazer a transição. O que eu quero dizer é que todos precisamos estar unidos e buscando juntos nossas causas.
Meu casamento trouxe-me muito mais vontade de brigar para que nós LBGTs, tenhamos o que for necessário para estarmos felizes. E aqui uma grande decepção com a comunidade, onde percebo cada vez mais um distanciamento, ou uma perda de objetivo dos nossos membros. Precisamos unirmo-nos e ajustar o foco. Nisto concordamos?
Oi Vagner! Importante conversarmos sobre. Eu dividi teu comentário em alguns pontos. Espero que contribuam para que possamos seguir a conversa: 1) Eu não sou contra o casamento entre homossexuais. É uma conquista importante. O fato que pretendi colocar em análise diz respeito a imposição de uma norma para os homossexuais através do casamento e constituição de família. Esse, pra mim é o problema. Criar uma norma de que é preciso casar para ser algo. Essas questões são individuais mas não podem ser naturalizadas. Por exemplo, conheço mulheres na faixa dos 40 desesperadas pela gravidez. Algumas devido a pressão social, feita pela família, amigos e outros espaços que frequentam. A questão para reflexão é se não estamos, enquanto sociedade, transformando isso em norma; 2) Quando tu te refere a igualdade tu coloca a questão das mulheres também. Um movimento feminista e um movimento LGBT pode criar suas pautas a partir de uma ideia de igualdade com os homens e com os heterossexuais. Mas a qual homem, a qual heterossexual queremos ser iguais? Por isso, penso que a pauta da busca por igualdade não é transformadora. Porque não abala as estruturas sociais; 3) A busca de "união" é complexa e permeia todas as discussões desses movimentos. Eu acho importante a união. Mas existem muitas formas de entender as coisas. Vivemos em uma sociedade que luta pela manutenção de privilégios. Quem está nessa luta detém o poder e age para criar percepções diferentes sobre as coisas. Antes de julgar, por exemplo, um gay afeminado que apoia Bolsonaro, acho que é preciso buscar entender o que faz ele agir assim. Se temos essas posturas extremas, pra uns muito claro, pra outros nem tanto, temos uma série de ações para tentar impossibilitar a união. Existe ação para isso! 4) Já se buscou resolver a questão a busca por união de diversas formas. Uma delas é através da ideia de "intersecsionalidade". Uma ideia sobre a qual não tenho muito estudo, mas que tenho me dedicado pra buscar alternativas.
Vagner, ficamos felizes que tenha gostado da nossa proposta, que é justamente dar abertura ao diálogo. Tuas colocações são muito pertinentes e inquietantes também. Tenho certeza que abriu caminho para um excelente debate.
Abraços!
Fabriss, adorei teu texto! Gostei muito das colocações e das exemplificações! Temos tanto de mídia hoje em dia trazendo as questões LGBTQI+, temos tanta informação extra aí ao dispor. Fantástico
Valeu Dhéko! Acompanha as postagens por aqui... A ideia e ampliar o diálogo.
Que fantástico, parabéns pelo insight.
O casamento não heterossexual, deixou de ser heteronormativo? Sera que nós comunidade LGBT+ carregamos em nossa medula da alma a padronização da instituição casamento? Se sim, realmente perderemos nossa identidade social e nossa particularidade. Certo homem uma vez disse: que termos sucesso como revolucionários deveríamos nos desprender de velhos padrões, criarmos um lugar seguro para desenvolvermos e voar pra longe daquele velho modelo.
Logo, penso que o casamento não heterossexual também não deva ser heteronormativo.
Obrigado pelo comentário MarcEs! Acho importante mesmo pensarmos em outras possibilidades de organização social. Se queremos mudança, é preciso mudar.
Ótima reflexão, ficam agora os devaneios, tenho pensando muito nisso ultimamente! O quanto a sociedade de certa forma faz com que sejamos enquadramos nos moldes e padrões que ela estabeleceu, pois independente do gênero, já temos uma dívida com ela...
Nunca somos bom o suficiente e não precisa que ninguém nos cobre, que não reprimo sua sexualidade..., já vem o julgamento e a classificação de quem está apta ou não para relacionar-se, o que é adequado? Muitas dúvidas pandêmicas
Ane, obrigado pelo diálogo! O exemplo serve para os casamentos heterossexuais e também para outras normas sociais que estamos tão acostumados a seguir que nem percebemos o quanto isso nos impõe um padrão que, nem sempre corresponde as nossas expectativas de vida.
Caramba, que análise heim?
Difícil acompanhar o teu pensar, faz com que a gente sempre comece a pensar diferente sobre as coisas, eu que não faço parte do grupo LGBT me senti provocada.
Muito bom Fabrício, teus textos sempre fazem com que a gente saia do senso comum. Que orgulho de ti!❤
Oi Sabrina! Que bom mantermos diálogo por outros meios. A intenção era fazer uma provocação mesmo. A ideia e refletir sobre conquistas e para onde elas estão nos levando.
Ane, obrigado pelo diálogo! O exemplo serve para os casamentos heterossexuais e também para outras normas sociais que estamos tão acostumados a seguir que nem percebemos o quanto isso nos impõe um padrão que, nem sempre corresponde as nossas expectativas de vida.